Observe-se que, desde em que foram delimitados o bem e o mal, existe uma forte tentativa de corromper tudo o que é divino. A serpente maligna, que no Éden seduziu aquela que se tornou mãe de todos os viventes, desde lá se arrasta pelo mundo sobre o seu ventre, alimentando-se do pó do qual o homem foi criado, disseminando a divisão e a confusão entre as pessoas. O alvo de seu desafeto é ainda o mesmo: o homem, por conseguinte, a família.
Por isso, a Igreja propõe estes dias em que, na meditação de um tema específico, à luz do Evangelho e do Magistério Eclesiástico, busca-se melhor discernimento dos problemas que afetam a família em nosso tempo, enquanto se definem os meios e os potenciais de cada membro dessa instituição que, juntos, trabalham-se numa caminhada em busca da satisfação em Nosso Senhor.
Mesmo parecendo uma sugestão quimérica, afetados por conceitos racionalistas em voga, a solução para os problemas da família estão, indiscutivelmente, nas Sagradas Escrituras e na Doutrina da Igreja, sob os quais deve estar, antes, toda jurisprudência pertinente aos casos que afetam direta e indiretamente a família.
Muito oportuno foi o tema da Semana Nacional da Família deste ano: “Escolhe, pois, a vida”. E sugiro, inclusive, que se faça a sugestiva leitura dos versículos 19 e 20 do capítulo 30 do Deuteronômio, de onde se tirou esta proposta – ainda dentro do espírito da Campanha da Fraternidade deste ano. “Ponho diante de ti a vida e a morte, a bênção e a maldição. Escolhe, pois, a vida, para que vivas com a tua posteridade, amando o Senhor, teu Deus, obedecendo à sua voz e permanecendo unido a ele. Porque é esta a tua vida e a longevidade dos teus dias na terra que o Senhor jurou dar a Abraão, Isaac e Jacó, teus pais”. Nesta reflexão deparamo-nos, então, com o livre arbítrio, a vocação e a missão do homem, no contexto desta comemoração à família.
O livre arbítrio é a escolha espontânea de cada um em fazer isso ou aquilo, é a opção pelo bem ou pelo mal. Decorrem-se daí, todavia, as conseqüências, pelas quais somos os responsáveis. E para ilustrar esta situação na realidade da família, temos inúmeros casos, situações diversas que a envolvem e, infelizmente, muitas delas temos sentido como uma busca fremente para desestruturá-la, como a facilidade com que se legalizam as dissoluções matrimoniais, a pressão científica sobre questões bioéticas, a liberação do aborto, a propagação do amor livre, a leviandade com que relativizam as fragilidades da natureza humana, querendo institucionalizá-las a todo custo, enquanto na verdade procuram oficializá-las como instituição, mesmo sendo impossível de se afirmar como um modo de vida, um meio de santificação, por sintetizarem tão somente a copulação do erotismo e o prazer; além de outros tantos fatores a corromperem a família. Entre estes destacam-se, ainda, os meios de comunicação, na maioria das vezes, invasores de nossas casas com todo o tipo de deformação das crianças e jovens, confundindo, também, os adultos menos esclarecidos.
Mas devemos estar atentos que, como nos ensina o Catecismo da Igreja, “não há verdadeira liberdade senão no serviço do bem e da justiça. A opção pela desobediência e pelo mal é um abuso da liberdade e conduz à escravidão do pecado” (1733). A desordem gera a desobediência, a desobediência gera o pecado, o pecado clama o castigo. E a cada vez que nos deparamos com os mais horrendos episódios, em todas as áreas, indistintamente, na ciência e na política, na sociedade e na Igreja, nos povos e na família, é Deus permitindo que o homem coma do fruto que custou o seu suor, o fruto sazonado e o fruto apodrecido.
É quando nos deparamos com o sentido com que se nos apresenta a vocação, ou melhor, é a linguagem que traduz aos nossos sentidos o chamado de Deus. O primeiro chamado é à vida; somos vocacionados a viver neste mundo nutrindo-nos da sabedoria de Deus que nos concede os ensinamentos que, por seu amor, nos são ditados pela sua Palavra e pela Tradição. Temos, assim, um direcionamento para nossos atos, que terão primordial influência em nosso livre arbítrio, ressalta-se. Por isso, a escolha, primeiro, à vida.
O chamado específico a cada um é muito mais do que um sentir-se atraído. É, numa melhor expressão, como que uma imposição íntima que nos impele, diria até que seja um instinto, a fazer o bem e se entregar a um específico trabalho, com desprendimento, com dedicação, com a reta intenção de fazê-lo tão somente por amor de Deus e pelo próximo.
Entenderemos a vocação dos que se entregam à vida religiosa, contemplativa e de ação pastoral, que se dedica à comunidade e, principalmente, dos que têm vocação para a família, para se dedicar à formação desta que a primorosa Constituição Dogmática do Sacrossanto Concílio Vaticano II “Lumen Gentium” definiu como Igreja Doméstica, “na qual nascem novos cidadãos da sociedade humana os quais, para perpetuar o Povo de Deus através dos tempos, se tornam filhos de Deus pela graça do Espírito Santo, no Batismo. Na família, como numa igreja doméstica, devem os pais, pela palavra e pelo exemplo, ser para os filhos os primeiros arautos da fé e favorecer a vocação própria de cada um, especialmente a vocação sagrada” (LG 11).
Exemplo – é uma palavra importante neste contexto. Os pais são o direcionamento seguro que os filhos devem ter. Em grande parte, os flagelos da família são conseqüentes de constituições matrimoniais imaturas ou, pior ainda, desajustadas. Aqueles que avançam no processo de conhecimento um do outro, o namoro, ou que resistem aos breves encontros de formação que nossas comunidades paroquiais promovem em preparação ao casamento, perdem uma oportunidade de se conhecerem melhor, a partir do aprofundamento de si mesmo, identificando suas virtudes e compreendendo suas limitações, para daí saber compartilhar sua vida, de maneira sadia, com outra pessoa, que deverá também conhecê-la bem em todos os aspectos. É o processo de formação. Se para se obter um grau de conhecimento depende de exaustivos estudos; se para alcançar um nível mais elevado de resistência física necessita-se de uma ingente dedicação e persistência; que se dirá da preparação para uma responsabilidade grandiosa, cujo componente primeiro deve ser o amor?
A vocação é fruto do amor de Deus por nós, que nos quer mais próximos dEle por meio de uma atividade que o engrandecerá, beneficiando quem foi feito à sua imagem e semelhança.
À vocação – ao chamado – sucede a missão. Somos chamados à vida e nossa missão é nos santificarmos no estado em que nos encontramos, seja na profissão religiosa, seja na opção pelo matrimônio, ou apenas pelo celibato, mas em cada uma destas temos os meios necessários e as exigências que devemos cumprir para nos santificarmos: “Sede santos, porque Eu sou santo” (Lev 11,44). A propósito, por ocasião da beatificação de Santa Paulina do Coração Agonizante de Jesus, João Paulo II destacou que “a santidade é a prova mais clara, mais convincente da vitalidade da Igreja, em todos os tempos e em todos os lugares” ( L´Osservatore Romano, n°44,3/1/91). Algum tempo depois, o saudoso Papa asseverou aos catequistas que “a santidade é a forma mais poderosa para levar Cristo aos corações dos homens” (idem, n°24, 14/06/92, pág, 22).
Muito oportuna esta colocação neste contexto, visto serem os pais os primeiros catequistas dos filhos. São eles quem deve encaminhá-los, primeiro, à Religião. Por isso podemos concluir que, se o mundo se entrega hoje a um renascimento do paganismo, é porque os pais foram omissos em sua missão de formar novos cristãos. Se há poucos santos no mundo, é porque existem poucas famílias santas. Se se proliferam famílias desestruturadas, é porque são frutos de casamentos que não se fundamentaram na formação cristã, na fé e na confiança em Deus. São Vicente dizia que “é possível restaurar as instituições com a santidade, e não, restaurar a santidade com as instituições”. Portanto, só teremos famílias santas se, antes, estas formarem santos que a santifiquem.
São estes, pois, os aspectos que desejamos nossos amados irmãos e irmãs, de nossa Arquidiocese de Juiz de Fora, meditassem ao longo deste mês de agosto. A vocação de cada um em consonância com a vocação de todos na Igreja na preservação e na defesa da vida. Para isso, é imprescindível a entrega à vontade de Deus, a disponibilidade para que a graça do Espírito de Amor infunda em cada um o ímpeto para desempenhar, com prontidão e ardor, a missão decorrente do chamado. Peçamos a intercessão de Nossa Senhora da Assunção e de São José, cuja casa de Nazaré será sempre o modelo primeiro para nossas famílias, onde o respeito, a prudência e a caridade devem reinar para que, no seio de nossas igrejas domésticas, a graça de Deus opere maravilhas e, impelidos pelo desejo de querer se entregar à expansão do Reinado de Cristo em nossas famílias.
DOM EURICO DOS SANTOS VELOSO
ARCEBISPO METROPOLITANO DE JUIZ DE FORA, MG.
Publicado no Portal A Catequese Católica
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