O Concílio Vaticano II declara solenemente: “A Igreja sempre venerou as divinas Escrituras da mesma forma como o próprio Corpo do Senhor” (Constituição Dogmática “Dei Verbum”, nº 21). E acrescenta: “Sempre as teve e tem, juntamente com a Tradição, como suprema regra de sua Fé”.
Na Bíblia, a autoridade não é o livro em si mesmo, isto é, o papel e a tinta, mas o próprio Cristo. Ele é a instância última e definitiva: nem o Pai admitirá outra superior à de Seu Filho. Essa jurisdição absoluta faz nascer a nova criatura no plano da graça, julga as consciências, preserva do rompimento pelo pecado ou reconstrói, após uma ruptura e salva da morte eterna. “Neste final dos tempos, Deus nos falou por Seu Filho (...) Esplendor da glória de Deus e imagem de Seu ser, sustenta o universo com o poder de Sua Palavra” (Hb 1,2-3).
A revelação divina foi feita primeiramente por via oral e, aos poucos, consignada por escrito, o que deu origem aos livros sagrados da Antiga e Nova Aliança. Um longo período, do século XIII a.C. ao I de nossa Era, medeia entre o início e o término dessa obra, feita por Deus, servindo-se do homem como instrumento.
Examinando o Novo Testamento não encontraremos uma unidade sistemática, própria das publicações didáticas e acadêmicas. Antes, é o reflexo da Fé vivida e sofrida das testemunhas dos eventos relacionados com o Salvador.
Os fatos ocorridos em sua vida terrena e a pregação possuem uma riqueza e variedade admiráveis. A fonte da mensagem original torna-se uma torrente que um só leito não comporta. O fruto da índole dos escritores e das circunstâncias diferentes que os motivaram se unem nas águas do mesmo e único manancial: Cristo em sua missão salvífica.
Juntamente com a Escritura, a Tradição manifesta também a magnificência do mesmo ensinamento.
Dos anos 35 a 60, São Paulo, haurindo a verdade em testemunhas da primeira geração (1Cor11,23;15,3), nos legou suas grandiosas Epístolas, enquanto possível formulando em palavras humanas o conteúdo da Salvação.
Os Sinóticos, sob a inspiração do Espírito Santo, fixam em suas páginas a imagem do Mestre, sua pregação, Morte e Ressurreição, para demonstrar “a solidez dos ensinamentos que recebestes”, como afirma São Lucas (1,4). Este, ao escrever seu Evangelho, explica estes objetivos: “compor uma narração dos fatos que se cumpriram entre nós, conforme no-los transmitiram os que, desde o princípio, foram testemunhas oculares e ministros da Palavra, a mim também pareceu conveniente, após acurada investigação de tudo desde o princípio, escrever-te de modo ordenado” (Idem, 1-3). Assim, a Tradição já existente é o fundamento dos escritos de São Mateus, Marcos e Lucas, entre os anos 60 e 90. Por último, São João assume outra ótica, contempla mais o Mistério de Jesus, adora e exalta esta glória, na morte obediente do Filho feito homem. Sendo a Escritura a expressão divina transmitida em nossa linguagem humana, importa uma adequada explicação, feita sob a direção do Paráclito.
Evidentemente, os historiadores, teólogos, exegetas têm uma grande contribuição a dar: “por seu trabalho, como que preparatório, amadurece o julgamento da Igreja” (“Dei Verbum”, nº 12). Como a Fé é anterior aos Livros Santos, estes são, em sua essência, um reflexo da mesma. Por isso, a interpretação definitiva da sagrada Palavra não é da competência dos eruditos em sua acepção comum, mas da autoridade da Igreja, “que exerce o divino mandato e ministério de guardar e interpretar a Palavra de Deus” (“Dei Verbum”, nº 12).
O magistério vivo, instituído pelo Redentor e confiado aos Apóstolos e aos seus sucessores, preexiste à fixação por escrito da Mensagem. “O Magistério vivo da Igreja, cuja autoridade se exerce em nome de Jesus Cristo (...) evidentemente não está acima da Palavra de Deus, mas a seu serviço (...) Com a assistência do Espírito Santo, piamente ausculta aquela Palavra, santamente a guarda e fielmente a expõe” (“Dei Verbum”, nº 10).
Adaptar as diretrizes divinas, distorcendo-as, para facilitar sua aceitação pela mentalidade moderna, é atraiçoar a Mensagem salvífica. Ela exige, pelo contrário, renúncia em favor da comunhão com toda a Igreja, especialmente os Pastores. Somente estes, ajudados pelos exegetas e teólogos, podem ensinar com segurança a transformar a letra morta na presença viva do próprio Cristo, construindo a tão desejada unidade. O Mês da Bíblia nos faz refletir sobre esse admirável livro que revela, a todos, os ensinamentos de Deus e Seu Enviado, o Cristo. Mais que embevecimento ante esse monumento ímpar à grandeza divina, urge comparar nosso modo de pensar e agir com a Doutrina e as diretrizes ali expostas. Há consonância ou não? Dessa resposta pende uma eternidade, pois nossa destinação final, boa ou desastrosa, é construída no tempo. Felizes somos e o seremos se os alicerces forem a Palavra de Deus, autenticamente interpretada e retamente vivida.
Cardeal Eugenio de Araujo Sales
Arcebispo Emérito da Arquidiocese do Rio de Janeiro
Fonte: Portal da Arquidiocese de São Sebastião do Rio de Janeiro
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